ESPELHO TRINCADO

por  Raphael Bruno, colaborador, jornalista e cientista político

A saída de Marina Silva do comando do Ministério do Meio-Ambiente pode ser entendida como uma pequena eclosão das muitas contradições sobre as quais se sustenta o governo Lula. Os elevados índices de popularidade do presidente tendem a camuflar as muitas tensões que envolvem a manutenção de um governo marcado pela conciliação de interesses divergentes. O equívoco estratégico daqueles que historicamente se dispõem a tal tarefa, típica manifestação prática do fenômeno político do populismo, é não enxergar quão frágil e efêmera é a conciliação temporária. Isso porque, em termos de política, ela nunca é plena, e sempre envolve relações de hegemonia.

Neste sentido, a dinâmica do Ministério do Meio-Ambiente com a totalidade do governo funcionava como uma espécie de microcosmos do equilíbrio de forças do próprio governo. Marina representava determinado grupo de interesses, em sintonia com a agenda ambiental, que se colocava de frente a outros interesses conflitantes do governo, quais sejam, os investimentos em infra-estrutura como mecanismo de impulsão do crescimento econômico. Um crescimento que não podia arcar com os custos do desenvolvimento sustentável, como deixaram tão claro Lula e a chefe da Casa Civil, Dilma Roussef, ao cobrarem publicamente agilidade na concessão de licenças ambientais para a construção de gigantescas hidrelétricas.

O interessante é notar como o equilíbrio é permanentemente tensionado por essas contradições. E como, eventualmente, levam a rupturas. Como um espelho trincado sob a permanente necessidade de cuidados. Lula costuma ser assustadoramente bom na capacidade de articular remendos. A impressão que fica é a de que Lula só não apagou o incêndio Marina Silva porque não lhe interessava o suficiente. Ou seja, Marina havia se tornado um empecilho concreto para outra agenda, conflitante com a dela, que necessita ser levada adiante com relativa intensidade.

Mais interessante ainda é constatar que a agenda ambiental não é nem de longe o único ponto de possíveis rupturas deste governo. Nem o mais explosivo. Um governo que abarca em seu interior, em maior ou menor medida, de Henrique Meirelles a PcdoB, de superávit primário ostensivo a Bolsa Família, de bons relacionamentos com Bush a Chavez, de banqueiros a MST, de Delfim Neto a Márcio Pochmann, é um governo sob constante ameaças de incêndios. Estes só não se concretizam com mais freqüência devido à incapacidade dos grupos sob dominação nestas diversas relações conflitantes de enxergar os processos hegemônicos que se configuram no interior do governo. De perceberem que, em dimensões diferenciadas, eles são a Marina Silva da Dilma Roussef. E, principalmente, de aceitar o jogo e se darem por satisfeitos com as parcas concessões que lhe são feitas. Pela capacidade que eles tem de abrir mão de um projeto autônomo. Pagam caro por isso. Marina pagou. Derrotada em praticamente tudo que de importante defendia ali dentro, cansou. Seu legado foi ter dado legitimidade, por tempo demais, a um governo que atacava acintosamente o que mais lhe era valioso. Fica a lição.

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